quinta-feira, janeiro 24, 2008

A Cadeira de Baloiço


Cena 1
Exterior / Noite – Coimbra / Casa

Estamos em meados de Maio, o tempo é ameno mas incerto. É noite de lua nova, deixando o céu aberto e extremamente estrelado. A cidade de Coimbra parece uma cidade fantasma, não se vê, nem ouve ninguém. Apenas a suave brisa nocturna, e o camião da recolha do lixo que passa na Av. Dias da Silva, todas as noite aquela hora, com um barulho refilão de um motor velho e cansado. Como sempre o camião pára ao lado da bela sebe verde e bem tratada que contorna o terreno da Quinta de São Jerónimo. Da rua pouco se vê a casa, apesar de o portão ser feito de varas de ferro, toda a casa é tapada por um vasto terreno repleto e árvores. Mas, para lá dessas árvores, há um bonito relvado percorrido pelas mais belas flores e sons da natureza que contorna a casa. A casa da alegria, é uma vivenda de dois andares de planta quadrada e está pintada segundo a tradição portuguesa: caiada, com portadas verdes e rodapé amarelo-torrado. A casa é circundada por um alpendre e a fachada poente é percorrida por varandas cheias de plantas bem arranjadas.

Cena 2
Interior / Noite – Quarto, escadaria e hall

No quarto, Dona Teresa dorme sossegada, virada para o lado da cama onde o seu falecido marido costumava dormir. O quarto é grande, bem decorado com a cama de dossel ao meio, à direita um roupeiro muito alto de madeira escura com duas portas e três gavetas. Tanto as mesas-de-cabeceira que ladeiam a cama, como a cómoda em frente, condizem perfeitamente com o roupeiro. E do lado esquerdo do quarto, ao centro da parede, uma enorme janela com uma varanda com bonitas plantas e duas cadeiras. Nisto, Dona Teresa acorda sobressaltada com a bela melodia da harmónica do seu falecido marido, desce as escadas rangentes até ao hall e segue até ao alpendre.

Cena 1 a)
Exterior / Madrugada – Alpendre

Os gatos vadios saltam a sebe que rodeia a casa e correm pelo relvado sob o céu estrelado. A noite é meigamente embalada pela pequena brisa que percorre o ar e agita as folhas das árvores provocando um barulhinho aconchegante. Dona Teresa, nas suas vestes de dormir, abre a porta e ao sentir aquele ar fresco da noite aconchega-se nas suas leves e brancas roupas, que brincam com o vento em torno das suas pernas nuas. Cruza os braços de modo a aquecer-se e senta-se no banco ao lado da cadeira de baloiço vazia, que, empurrada pelo vento, baloiça suavemente provocando um “toque – toque” na madeira. Dona Teresa olha em frente com um olhar vazio, mas a sua expressão é de calma e serenidade e até um pouco de felicidade. Dona Teresa sente-se bem ali, preenchida, acompanhada. Respira calmamente, e do mesmo modo se vira para a cadeira de baloiço que se encontra à sua esquerda.

Dona Teresa
(vira-se para a cadeira de baloiço e enrola-se na manta que está pousada ao seu lado)
Não consegues dormir, meu querido?

Dona Teresa
(agora, outra vez voltada para o terreno que rodeia a sua casa)
Está uma noite muito bonita. A lua já vai baixa, já deve ser tarde.

Dona Teresa
(apontando para um gata que percorre o relvado de um lado ao outro)
Olha! Estás a ver aquela gatinha? Já teve filhotes outra vez! Pariu na passada Terça-feira, dez criaturinhas adoráveis. Quatro fêmeas e seis machos.

O sol já começara a nascer quando Dona Teresa acaba por adormecer ali mesmo, na companhia da memória do seu falecido marido.

Cena 2 a)
Interior / Manhã – Hall

O hall é a zona mais despida da casa. Tem um tapete de Arraiolos no chão e do lado esquerdo da porta uma escrivaninha e do lado direito um bengaleiro. Em frente, à esquerda uma escadaria e por debaixo dela, em frente à porta principal, a entrada para a sala. Finalmente, do lado direito à porta de entrada, a cozinha, de onde vem uma barulheira insuportável. Ouve-se assobio da chaleira, as torradas a saltarem, a loiça e os talheres a tocarem uns nos outros e na bancada. Depois o tremelique das loiças e dos talheres sobre o tabuleiro carregado pela Dona Teresa, senhora de idade avançada e como tal já com falta de força.
Mas, todas as manhãs Dona Teresa faz o mesmo. Atravessa o hall de entrada em direcção à porta, transportando um tabuleiro com duas chávenas de chá, açúcar, leite, duas torradas com doce e o jornal.

Cena 1 b)
Exterior / Fim da manhã – Alpendre

O sol vai subindo e as sombras diminuindo. Está um dia de verão quente e sem uma única nuvem. A luz é intensa e faz com que as flores desabrochem e se voltem para o sol. As folhas das árvores assim como a relva, mais verdes que nunca, brilham loucamente. As paredes caiadas da casa reflectem a luz do sol, fazendo a casa parecer maior e mais bonita, de tão brilhante que fica. O ar é perfumado e ligeiro, ecoa o grasnar dos patos que nadam no lago ligeiramente tapado pelas árvores do lado esquerdo do casarão. O alpendre é todo feito de madeira, o chão é percorrido por tacos bem encerados. Sobre este estão duas mesinhas de café, uma em cada lado da porta de entrada. Do lado esquerdo, essa mesinha é rodeada por um banco encostado à parede e mais à esquerda uma cadeira de baloiço. Em cima dessa mesa de café está, desde sempre, a caixinha do tabaco do senhor Manuel, o seu cachimbo, os seus fósforos e tantas, dos mas diferentes feitios e tamanhos, chávenas de café e chá e algumas canecas. Debaixo da mesa, estão dezenas de jornais, uns mais recentes outros mais antigos, abandonados e intocados deixados por Dona Teresa presa na própria senilidade. Mais uma vez, Dona Teresa empurra a porta que tinha deixado encostada e passa fazendo um último esforço para aguentar com o tabuleiro. O espaço para pousar-lo em cima da mesinha de café é nulo ou inexistente, de modo que Dona Teresa decide pousado em cima do banco e por só a loiça em cima da mesa. Dona Teresa toma ali o seu pequeno almoço pousa o jornal num novo monte debaixo da mesa, sorri com suspiro de “tarefa cumprida” e fica ali presa em recordações com um olhar vago e perdido entre flores, árvores e sebes.

Cena 1 c)
Exterior / Início da manhã – Alpendre

O Inverno chega e com ele traz o frio. Estamos em Janeiro, as belas árvores de outrora estão agora nuas, fracas e sem graça. A relva luta para permanecer verde e saudável, mas é uma luta ingrata e invencível. Apenas a sebe permanece imaculada aos estrados daquela dura estação. A casa está coberta um espesso nevoeiro que não deixa passar nem um raio de luz. Parece agora bastante mais velha e desgastada. O branco das paredes parece cinzento e o verde e o amarelo da decoração pouco ou nada se destacam pois também estes se tornaram em tons acinzentados. A chuva é grossa e abafa os outros sons da natureza. Raramente pára e como seu companheiro de festas vem sempre o vento. Um vento forte que mexe com tudo e todos. As portadas batem com força, as plantas nas varandas lutam todos os dias pela sua sobrevivência, as poucas folhas que ainda restam nas árvores são arrancadas à força como todas as outras. No alpendre a cadeira de baloiço baloiça mais rápido que nunca, e as páginas dos jornais debaixo da mesa de café abrem e fecham batendo umas nas outras. Como todas as manhãs Dona Teresa empurra a porta com o tabuleiro a tremer, pousa-o no banco por falta de espaço da mesa. Onde, pousa a chávena do seu marido e a caneca de leite e tome o seu pequeno-almoço. Os guardanapos voam naquele vendaval mas Dona Teresa não reage enrosca-se na manta e continua a tomar o seu pequeno-almoço, perdida em pensamentos e recordações. Nisto, entra um carro pelo portão que chia mais alto que o ruído da chuva. Dona Teresa lentamente olha para a entrada dos carros. Um carro preto e pequeno vai percorrendo a estrada de terra toda enlameada. O barulho do motor e dos limpa vidros mal se ouvem debaixo de tanta chuva. O carro pára, um guarda-chuva vermelho escuro abre-se e de dentro do carro sai uma senhora magra e muito bonita. A senhora corre chapinhando na lama, até ao alpendre onde cumprimenta Dona Teresa. Depois abraça-a com muito carinho. Ajuda-a a levantar-se e leva-a para dentro.

Cena 1 d)
Exterior / Antes de almoço – Alpendre

Mãe e filha saem de casa. A Beatriz carrega três malas, cada uma maior que a outra e Dona Teresa leva apenas a sua necessaire, a sua carteira e o guarda-chuva. As duas, bem agasalhadas, dirigem-se para o carro e guardam as malas apressadamente. Beatriz ajuda a mãe a entrar no carro e entra também. O carro começa a andar e mais uma vez o portão abre e fecha chiando muito alto. O chiar do portão é como um gemido, uma tristeza enorme percorre o terreno, a chuva permanece, o céu fica cada vez mais escuro e as árvores cada vez mais fracas e nuas. As portadas batem e as plantas das varandas morrem pouco a pouco. No alpendre, os jornais começam a voar, a loiça a dançar e a cadeira de baloiço a baloiçar num frenesim.

quinta-feira, janeiro 10, 2008

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