domingo, fevereiro 15, 2009

trigésima primeira história. episódio três.

Passados poucos dias Amélia continuava inadaptada na sua própria casa. E para não bastar, todas as noites sonhava com o eléctrico, impávido e sereno, abandonado numa sala escura, apenas iluminada pela luz amarela-dourada do eléctrico. Assim, Amélia vivia inquieta e desassossegada até ao dia em que tomou uma grande resolução!
Pegou nas suas coisas e fugiu da sua própria casa. De mala feita deixa a sua casa com o intuito de nunca mais voltar. Fecha a porta atrás de si e entra no eléctrico. Ainda no breu da noite volta a uma casa onde já tinha estado - a leiloeira - à socapa, entra no prédio. Tenta várias portas, mas estão todas trancadas. De repente repara numa porta mais ao fundo, por debaixo desta porta é visível uma luz amarela-dourada que ilumina o seu interior. Amélia sorri, ela sabe perfeitamente o que está por trás daquela porta relativamente maior que todas as outras. Amélia aproxima-se, pousa a mão sobre a maçaneta e roda o pulso, a porta abre.

O eléctrico, comprado naquela tarde por um casal caprichoso, em que o eléctrico não passou de mais um capricho, ficando assim o eléctrico guardado ou abandonado naquela sala à espera que o fossem levantar.

Amélia fecha os olhos com força com medo que tudo isto não passasse de mais um sonho. Mas quando os volta a abrir o eléctrico continua à sua frente como que a desafiasse a entrar e a conduzi-lo. Amélia apressasse e empurra o eléctrico até aos carris na rua e prepara-se para uma grande viagem que só acabaria no meu maior sonho - viver no eléctrico.
Já há duas horas que Amélia viajava em êxtase de alegria no eléctrico, quando ao longe, um som ecoa nas ruas - ti-ri-ri-ri - o eléctrico polícia surgia ao fundo com as suas luzes a rodopiar e iluminando as ruas de azul e vermelho.

sábado, fevereiro 14, 2009

São como agulhas que levemente penetram a minha bolha, e deixam entradas e saídas de ares de influências. A bolha mantêm-se intacta pela força das minhas experiências, mas será que por outras e novas influências, essas agulhas virão a ter razão? Espero que não. Sou racionalismo puro e intacto, sentimento fragmentado e analisado enganado por utopia e imaginação. Por isso uso o cérebro em vez do coração, planeio tácticas para viver sem desilusão. Há quem diga que vivo na ilusão. Talvez sim, mas esta ilusão tem origem do real que me proporciona a matéria-prima para construir este novo mundo complexo e organizado na sua própria desorganização, que me envolve numa bolha de protecção. Não digo com isto, que rejeite tudo o que é exterior, simplesmente a minha visão fica turva e enublada pelos gases da minha especulação. Espreitarei agora por estes novos furos que libertam a minha visão, quiçá um dia se deixarei voar este balão.

segunda-feira, fevereiro 02, 2009

trigésima primeira história . episódio dois

César já está em casa há um mês, a sua figura é agora esbelta e tonificada e o seu ego enche largamente as pequenas proporções da casa. O frigorífico, outrora cheio de doces e pratos cheios de calorias, ostenta agora produtos dietéticos e uma enorme variedade de verduras. O fundo falso do armário das panelas em tempos cheio de chocolates, está agora cheio de barras muesli, o alimento preferido de César desde que voltara da clínica.
Amélia, que recebera finalmente atenção na ausência do irmão, fica muito incomodada com o seu regresso porque César voltara a ganhar toda ou ainda mais importância do que já tinha quando ainda era obeso. O seu único refúgio continua como sempre a ser o seu armário onde permanece, imaculado o seu poster do eléctrico 28.
Um dia Amélia acorda a meio da noite cheia de dores nas costas de ter adormecido mais uma vez dentro do armário e toma uma decisão. Arranca o poster da parede do armário com muito cuidado para não o danificar e encaixa-o dentro de um tubo de cartão que já tem guardado há uns tempos, prevendo a chegada deste dia. Amélia põe um conjunto de roupa, a sua roupa interior lavada e a sua higiene na mala e volta a entrar no armário onde fita a parede de onde acabara de tirar o poster, na madeira do armário havia um pequeno rectângulo recortado, Amélia dá um toque no canto inferior direito desse rectângulo e a placa de madeira que o forma cai ao seu colo, abrindo um pequeno buraco na parede onde não cabe nada mais do que o seu porquinho mealheiro. Amélia volta a sair do armário e guarda também o porco na mala. Sorrateiramente dirige-se à porta de casa, inspira fundo, sorri e sussurra "adeus". Do lado de fora fecha a porta atrás de si e apanha o eléctrico, onde dorme o resto da noite.
Quando Amélia acorda já o eléctrico tinha feito o seu circuito 7 vezes. Amélia saiu em frente a um prédio extremamente amarelo e luminoso de onde uma voz grossa e profunda se propagava pelas janelas abertas. Amélia senta-se nos degraus da porta principal; parte com uma patada, o seu mealheiro e conta o seu dinheiro. Depois debruça-se sobre o molho de moedas de cobre, fazendo com que a sua cara fique também dessa cor pela luz que as moedas reflectem. Ao todo Amélia tem 2 moedas de mil e várias de latão que rondam os 250, com as duas mãos agarra às punhadas as moedas e coloca-as no bolso do seu casaco. De seguida, tira de um pequeno bolsinho da parte interior e traseira, quase secreta, da sua mala um recorte de um réclame. Esse bocadinho de papel apresenta uma figura já bem conhecida de Amélia, o eléctrico! Mas, com uma particularidade: é um anúncio a um leilão onde a base de licitação são umas míseras 100 unidades e a estimativa feita pela leiloeira não passa as 2000. Amélia sorri, desde a noite anterior ao internamente do seu irmão que achava que nunca mais iria conseguir concretizar o seu sonho - juntar dinheiro suficiente para comprar um eléctrico e morar nele - mas a esperança volta a encher-lhe o coração! Apressadamente, entra no prédio e corre até à sala com as moedas a tilintarem no seu bolso. Na sala, o homem da voz grossa e profunda gritava valores cada vez mais altos. Quando chega à sala o eléctrico tinha acabado de entrar em licitação, mas o preço subia loucamente a casa segundo. A calma que a sala tinha outrora, era agora interrompida pelo relato apressado do senhor da voz grossa e profunda, e pelas variadas raquetinhas numeradas que se iam levantando. Rapidamente as possibilidades de Amélia são ultrapassadas o que a faz abandonar a sala e voltar a sentar-se nos degraus da entrada. Está atónita como o seu maior sonho lhe escorreu tão facilmente por entre os dedos. Aos poucos ganha coragem para se levantar e caminha lentamente pelos carris do eléctrico até à loja imobiliária onde lhe alugam uma pequena casa por 1800 und. Amélia paga a primeira renda com o dinheiro que houvera poupado e reúne esforços para vir a trabalhar como condutora do eléctrico. O que consegue em menos de 20 dias, conseguindo juntar o dinheiro suficiente para pelo menos a segunda renda da casa. Amélia apesar de todos os desgostos que viveu nos últimos meses está agora calma e feliz. Por enquanto.